Realizado pelo jovem cineasta Fernando Lopes (1935-2012), Belarmino estreou no Cinema Avis, em Lisboa, a 18 de Novembro de 1963. Os cartazes publicitários na imprensa da época anunciavam lotação esgotada para as primeiras sessões de estreia e ante-estreia. Infelizmente, o filme não resistiria muito ao fracasso da bilheteira, apenas permanecendo em cartaz nesse cinema durante três semanas. Frustrando todas as expectativas, o filme repetiria o fracasso comercial d’ Os Verdes Anos, o filme de Paulo Rocha estreado no ano anterior, e que também só permanecera duas semanas em cartaz nos cinemas São Luiz e Alvalade. Convém esclarecer que, por esses anos, um filme em estreia permanecia em média oito a nove semanas em cartaz em Lisboa, antes de começar a digressão pelo país.
De acordo com o produtor António da Cunha Telles, a estratégia de distribuição do Belarmino pretendia explorar um circuito de exibição alternativo que já dera diversas mostras anteriores de dinamismo e vigor entusiasmantes: com um jovem realizador com passado cineclubista (Lopes foi associado do Cine-Clube Imagem), o produtor António da Cunha Telles optou por um lançamento do filme junto do circuito cineclubista, potenciando assim o lado autoral e moderno do filme junto de uma audiência claramente mais exigente. Infelizmente, os sucessivos casos de perseguição política por parte da PIDE a diversos cineclubes e dirigentes e associados cineclubistas havia fragilizado o movimento, sobretudo na segunda metade dos anos 50. O movimento fora silenciado e reprimido, sobrevivendo mas perdendo muita da influência social que conquistara entre 1945-55. Simbolicamente, A proibição da realização do V Encontro Nacional de Cineclubes em 1959 representou o fim de um período áureo do cineclubismo em Portugal, um momento histórico em que vários cineclubes portugueses foram determinantes na formação de várias gerações de cinéfilos.
Estes pensamentos passaram diversas vezes pela minha cabeça no passado dia 20 de Janeiro, enquanto me dirigia de carro de Guimarães para Amarante, respondendo a uma chamada da Elsa Cerqueira para apresentar o filme Belarmino a uma plateia de alunos do ensino secundário. Integrada num conjunto de sessões mais vasto do Plano Nacional de Cinema da Escola Secundária de Amarante. A sessão estava marcada para o cinema Teixeira de Pascoaes, a casa do Cineclube de Amarante, muito bem decorada com algumas das frases cinéfilas (de Johnny Guitar a João César Monteiro), diversos cartazes de filmes e algumas preciosidades arqueológicas do tempo da projecção analógica que a transformam numa mágica e misteriosa “caverna”, que remete inconscientemente para a alegoria platónica, ou “gruta” do cinema, se preferirmos a arábica gruta de Ali Baba das Mil e uma noites de Sherazade.
A “caverna”/“gruta” cinéfila amarantina rapidamente se preencheu com cerca de 200 adolescentes. Estavam ali para ver o anti-herói Belarmino através dos olhos e da câmara de Fernando Lopes, um jovem cineasta acabado de chegar de Londres onde respirara os ventos de mudança do Free Cinema de Lindsay Anderson, Karel Reisz e Tony Richardson. Belarmino, o filme, demonstra que Lopes aprendeu bem a lição de retratar/elogiar o homem comum, de dar imagem e voz ao marginal e invisível.
Mas Belarmino é sobretudo um retrato de uma cidade (Lisboa) e de um país (Portugal) amordaçados havia já quase quatro décadas. Um filme que começa e acaba com dois planos que simbolizam a prisão que então asfixiava os sonhos dos portugueses, como o sonho de Belarmino Fragoso em tornar-se treinador e “fazer campeões”. Este filme é sobretudo um testemunho amargurado de sonhos frustrados e de oportunidades perdidas: “Podia ter sido um grande pugilista, dos melhores da Europa, talvez até campeão dos meios-leves e agora é quase um punching ball”, diz-nos o narrador.
Belarmino é, simultaneamente, uma lição de história, um documento sublime do Portugal em mutação social na transição do salazarismo para o marcelismo, e uma lição de cinema, um objecto cinematográfico admirável que expõe o fascínio da linguagem cinematográfica reinventada pelo cinema moderno. Por tudo isto, é emocionante assistir a uma plateia repleta de adolescentes a conhecerem pela primeira vez Belarmino e Fernando Lopes, um cineasta que queria mostrar Portugal aos portugueses tentando iludir o trabalho castrador da censura, mostrando os marginais e invisíveis de uma sociedade de brandos costumes que se esqueceu de sonhar.
A sessão de Amarante revela, finalmente, todas as possibilidades e potencialidades do Plano Nacional de Cinema. Apesar de várias desconfianças iniciais, em Amarante demostra-se mês a mês que é possível levar a escola ao cinema, criar hábitos de cinefilia em sala e investir em literacia cinemática. Aqui não se pretende apenas “mostrar filmes” aos adolescentes, mas proporcionar uma experiência cinemática que passa pela ida à sala de cinema, pela partilha de experiências pessoais numa celebração colectiva, pela selecção de filmes que colocam questões aos espectadores e que os querem deixar a pensar. O cinema enquanto motor da vida, enquanto método de reflexão e enquanto experiência social, cultural e artística.
No final, só me restou agradecer aos organizadores o incrível trabalho desenvolvido em prol do cinema e dos espectadores que podem fruir desta iniciativa. Percebi, in loco, que o Plano Nacional de Cinema em Amarante promove um envolvimento que não se esgota numa mera projecção de filmes, mas numa experiência mais vasta, que antecede e sucede a sessão propriamente dita, que dará garantidamente muitos frutos num futuro próximo. Em Amarante, ao contrário do que prevíamos para o anti-herói Belarmino, o futuro cinéfilo avizinha-se muito esperançoso.
Paulo Cunha”