“O maior poder do Cinema reside na capacidade de fazer germinar a dúvida no espetador. Um filme de qualidade é, por excelência, um veículo de interrogações profundas. Fruir o filme “A Outra Margem” é sinónimo de nos submetermos à inevitável inquietação, ao desassossego que os dilemas das personagens provocam.
Filipe Duarte, através da interpretação do homossexual e transformista Ricardo, estabelece desde os primeiros momentos a ponte que aproxima o espetador do seu drama psicológico. A dor provocada pelo suicídio do seu companheiro leva-o a atentar, sem sucesso, contra a própria vida, sendo perante a eminência da morte que o personagem principal inicia o seu processo de renascimento, com a chegada da sua irmã, Maria, a Lisboa.
No trilhar desta jornada, que ambos iniciam após dezasseis anos separados pelo preconceito, Maria transporta Ricardo ao encontro das suas raízes, em Amarante, onde eclode o encontro das múltiplas margens que constituem o argumento fílmico: a de Ricardo, que se confronta com a exclusão por parte do pai e com a sensação de um vazio existencial; a margem de Vasco, um adolescente com trissomia 21 que na sua simplicidade é feliz e sonha com o mundo do Teatro; e a margem de Maria, uma mãe solteira e lutadora que tenta unir a família.
Toda a obra é um grito que apela à reflexão. A questão da identidade sexual procura ser desconstruída e desmitificada: será inata ou adquirida ao longo da vida?
Todo este estigma que infeta uma sociedade e cerceia a individualidade é personificado na pele de José, o pai, cuja margem, literal e metafórica, se revelou intransponível, dado que segundo a sua argumentação “o tempo não limpa a vergonha”. A presente situação de exclusão e de “vergonha” de não encaixar numa sociedade conservadora e fechada suscita o questionar do conceito de “normalidade”.
Tendo como pano de fundo a beleza de Amarante, onde as margens do Tâmega espelham a harmonia da Natureza em contraste com a desarmonia das relações humanas, esta trama aproxima-se do espetador pelo realismo com que carateriza o movimento de libertação ascensional de cada um dos personagens. Vasco alcançou a ambição de se dedicar ao teatro, demonstrando que os únicos limites existentes são aqueles que impomos a nós mesmos, e Ricardo nas dificuldades redescobriu-se e redescobriu a felicidade no seu núcleo familiar. Apesar de não se ter reconciliado com o pai, Ricardo conseguiu perdoar-se a si próprio e ao passado num momento de grandes dificuldades, simbolizando o ser humano na sua diversidade e humanidade com toda a sua plenitude.
Volvidos dez anos do lançamento de “A Outra Margem” será que o comportamento coletivo em Amarante, e em Portugal, evoluiu? Será que todos sentem a liberdade de expressarem assumidamente quem verdadeiramente são? Ou será que ainda vivemos encarcerados em determinadas construções mentais pré-definidas?”
Carina Lopes