«1. Sinopse a 2 dimensões
Sobre o espetador vai descendo o fim da madrugada. Um ganir canídeo, espécie suicida de eco seco rasgado no ladrilho macio de granito, atravessaria sinusoidal a soleira da porta fechada descaído do tampo de mármore e caminharia ao longo do pavimento envergonhado se algum tipo de acidente fosse acontecer.
Ganido linear sibilino e curvo sobre ladrilho de rectângulos e balcão de mármore polido por extenso, tecidos no mesmo plano. Um ganido a negro transparente que só acontece no largo de uma pequena cidade. Ambos esquecidos. Ambos sem fim. O eco do cão, o rasgo e o gemido doído.
Nos sonhos a preto e branco como nas películas, os realismos exteriores vibram azuis limpos ou pastel maciço quando o vulto do ator é recortado na paisagem, o diálogo é só ouvido, ou o emissor suga a lente. Não porque a prenda no olhar mas porque ela não o encontre.
Em planos curtos e próximos a realidade desaparece com a paisagem e sobram palavras atadas ao contorno das feições do ator, fundindo-se ambos os planos, o acústico e o tonal, como se dissessem respeito a realidades espiraladas de uma só dimensão, ou vidas lineares apertadas entre massas de vazios, demasiadamente cínicas e soltas, porque vidas não vividas perspectivam espacialmente realidades de dimensão um, sem radiações azuis. E só excepcionalmente os realismos claro-escuro, a luz nova emite radiações azuis.
2. Sinopse de cinzentos
Do lado de dentro da porta da ação a luz importa pouco ou nada ao texto dito. A não ser que os feixes reflitam petardos. E do lado de fora importa menos.
Quando a luz fixada na pelicula, recortada no plano grave da proximidade e vincada no realismo de escuros enegrecendo, se esvai quer no texto dito quer no pensado, os planos despem a solidão dos objetos, as cadeiras desistem dos silêncios vazios, as emoções dissolvem ausências, restando impressões ultravioleta gemidas na borracha dos sapatos contra as cristalizações escondidas dento dos ladrilhos do pavimento, olhares indiretos na diagonal da camara fugidos da lente. Três quartos de um diálogo sempre dito de viés por cima espetador.
Uma luz assim, escondida dos olhares dos atores, dos espectadores e dos teoremas rectângulos de triângulos, seria própria a uma forma de êxtase dita em rodilhões de esgares psíquicos ou palavras, escritas, pensadas, ou só cogitadas e imprópria à linearidade sibilina das relações espaciais entre vazios e pavimentos crus desenhados nas tangentes da borracha cansada saída de um realismo de cinzentos iluminados por feixes voláteis de penumbras.
Um filme a preto e branco não faz a arte da arte. A intensidade, essa faz as emoções da estética movida em qualquer texto. Também neste. Pelo que o preto e cinzento, um trecho ou dois a branco, desmotivado da intensidade claro-escuro e dos escuros e claros entre si, se por um lado recorta austeridades psicológicas nos semblantes ditos, por outro desenha dentre contornos solidões tão duras quanto cruelmente esvaziadas de sensações ou sequer das psicoses mais primárias.
Nesse caso a estética de iluminação através da rasante indirecta vertida da diagonal superior, aparecida e desaparecida ao longo do conto filmado, uma vez à vista, se a camara do espetador não se distraiu, faz emergir o tema e o título, solidificando a aparência, o vazio e a solidão que ata o texto e a imagem, perfazendo o todo e a parte da função e da forma do estado da arte.
3. Sinopse interior
É da luz dura denunciada nas massas escuras que emerge quer a solidão quer o vazio e, numa equação tempo, a morte. Essa forma de eternidade sem assunto.
Todavia sempre como vazio e solidão.
Pelo que se a esperança não aparece será porque nunca a houve. Não foi convocada. Nem seria próprio de uma conversa sobre a morte, que funde os diferentes tons da película de cinzentos intensos e transparências a negro, como se sobre o que dela se pode reter e espremer não fora outra matéria que a fatalidade mas o vazio. A solidão da foto-finisch do que possa ter sido ou seja qualquer vida.
É verdade que o debate das ações e atores sobre a solidão dura todo o tempo de todo o conto, reflectindo a experiencia física pura sobre o vácuo sendo a ambos comum a projecção da morte. Pelo que, se a esperança reproduz começos originais ou continuados, a fatalidade suposta reduz razões e emoções ao mais minúsculo dos comprometimentos deixando de ser o que parece, ou seja o estado de nenhum compromisso entre luz e sombra, entre o menor par de atores, o relógio de doze horas à uma hora, o tempo da vida que não organizou espaços existentes, um espólio de coisas nem perdidas nem achadas. Solidão pois. Ainda assim vazia também ela. Como a iluminura românica de uma hidra dentro de um bestiário guardado numa biblioteca perdida. Necessariamente beneditina.
3.1- Sinopse psiquiátrica
Talvez por isso nesta curta-metragem, como nas iluminuras românicas sexuadas e nos filmes em geral, em algum lado ou de alguma forma, apareça uma cena de sexo. Como se todas as histórias, para serem compreensíveis pelos espetadores, devessem, em algum lado, na contra página de uma ilustração monástica da baixa idade média, aludir em feito ou metáfora à criação.
Para os espetadores a criação tem a ver com sexo e a criatividade também. No românico nem sequer é subtil ao contrário do que se faz constar.
O sexo românico ou em cinema teve e tem algo de psiquiátrico e cenas de sexo há-as e houve-as de todos os feitios e explicitações. Há-as languidas, nuas, cruas, a sério e eróticas, tagarelas e silenciosas quando os espetadores se assombram para dentro e os olhares sorvem o ecrã.
Os takes pornográficos são os mais complicados de tecer, pela violência que envolvem. Até os iluministas medievais o compreendiam. A criação, como a criatividade, envolve altas frequências de violência emotiva.
Resumindo o sexo pode ser belo em cinema? Pode.
Há um take de sexo nesta curta-metragem? Há.
É explícito? Sim. De uma rudeza de afetos nunca emocionados. De nódulos cruéis dos dedos nunca dançados nem despidos. Entregas nunca consumadas, ou espécie de anti êxtase de santa Teresa de Ávila esquecido por Bernini. Uma cena explícita de sexo tão curta e límpida quanto violenta e cruel, como um buraco negro implodindo o hipotálamo.
Faz falta à história? Sem ela havia filme mas não havia história … no princípio era o sexo e antes a mais terrível e temível das solidões das vidas de que trata a arte e a arte do cinema também.
Haverá quem não pense. Mas quando as exclamações dos espetadores engoliram a sala dir-se-ia, co caso, que sim. Pensam que sim.
O filme é mais bonito por essa cena de sexo. Dá sentido aos tiros ouvidos pouco a seguir.
4. Sinopse a 11 dimensões
Noutro café de outra cidade um estalido de elétrico deslizando o anteceder da madrugada, do quando os sonhos e os dramas ainda dormem, estalou agudo no mesmo contorno sinusoidal entre o balcão e o granito polido e gasto do pavimento recortado de retângulos e diagonais por desenhar de cinzentos escuros, mais claros, mais escuros e menos claros, e nenhum dos claros cristalinamente brancos, todos eles, triângulos, diagonais, catetos presentes e retos de hipotenusas tonais ausentes, tampão de mármore do balcão de café, todos de um só plano.
Um ganir canídeo numa pequena cidade sem carris e um estalido de elétrico desabitado pelo alvorecer chuvoso de uma cidade anónima pela uma hora do anunciar da perene madrugada, juntos no mesmo plano, abafariam a voz de dois tiros secos disparados de um revólver suicida. Presos que se encontrassem no drama elegíaco de uma curta-metragem sem esperança.
5. Sinopse geral a 3/4
Os tiros são a voz dos homicídios seguidos de suicídios?
O anónimo ganir do elétrico nos carris e o estalido de um cão ao frio do outro lado da porta, ambos da mesma dimensão da madrugada sozinha, fazem parte do arsenal de artefactos à mão da consumação das vidas trágicas?
Sófocles não poetou sobre pistolas. Ou poetaria sobre metáforas delas?
-Está tudo bem Teresa.
Na cidade escondia e fechada a conversa sairia do realismo de uma cabine telefónica a preto e branco do tempo em que havia telefones fixos, menos antiga que os gemidos dos freios dos eléctricos e também mais recente do que os latidos de cão de rua, abandonado do lado de fora para morrer no inverno. Os telefones das cabines públicas não deixam rasto de esperanças sob as chamadas falhadas. Já os telemóveis sim. Como se chamassem identidades simétricas. Em eras ou dimensões diferentes ou ausentes. Qual seja.
– Vou morrer em duas semanas.
– Ouve Teresa. Viste as minhas análises. Não me culpes. Morri nas duas semanas que o médico previu.
– Deves saber que os médicos raramente falham.
– Nós sim.
– Desta vez não falharam por mim. Nem eu falhei.
– Segui à risca as espectativas mediúnicas.
– Não soube como te dizer. Não te preocupes.
– Não tens de atender.
Guimarães 18 de fevereiro de 2019
António Fernandes da Silva»
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Que prosa poética, Prof. António F. Silva!
Muito grata pelo precioso contributo.
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Ficha técnica:
Título: E Assim Se Foi a Esperança
Realizador: João Mendes Pinto
Actores: Eloy Monteiro, Filipe Crawford
Diretora de Fotografia: Marina Zhevora
Portugal, 2018, 14’18”