“Passarinhos e Passarões” de Pasolini remete o espectador para a década de 60, época de estruturas conjunturais complexas, em que o mundo vivenciava o apogeu de um inegável bipolarismo, isto é, o confronto indireto entre duas conceções políticas, económicas e sociais distintas: o capitalismo ocidental, que defendia as liberdades individuais, e o comunismo, que defendia a subordinação dos indivíduos aos interesses do Estado, em nome do príncipio da coletividade.
Num mundo extremamente debilitado, que em meio século fora palco dos dois conflitos bélicos mais sangrentos da História, Pasolini arquitetou “Uccellacci e Uccellini”, onde projetou todo um sentimento de desilusão relativamente à sociedade sua contemporânea e à ineficácia dos valores em que acreditava.
Esta longa-metragem encontra-se intrinsecamente vinculada à vertente literária de Pasolini que, por detrás de um conto efabulatório, velou todo um universo sagaz e crítico das graves lacunas e falhas de toda uma época de aceso confronto e debate político.
Desde o início da película que um sentimento de incerteza e desilusão paira na ambiência da obra: «Aonde vais Humanidade? Sei lá.». É esta a jornada a que Pasolini convida o espetador, com a presença de Totó e do seu filho Ninetto, ambos a trilhar o caminho de uma estrada deserta, a partir da qual farão o retrato realista e cru da sociedade onde se inserem, acompanhados pela figura misteriosa de um corvo marxista, que representará, simbolicamente, o próprio Pasolini.
O espetador cedo percebe que a incidência constante e sistemática da câmara no rosto melancólico dos mais carenciados e na degradação dos seus casebres não é mera coincidência. Pasolini pretendia mostrar a dura realidade de uma sociedade dicotómica, na qual a progressiva riqueza de uns significava a o empobrecimento diretamente proporcional dos mais vulneráveis. O realizador cumpre, assim, a sua função, enquanto pintor da realidade que sensibiliza o espetador com a imagem de um quotidiano injusto e decadente, retrato das populações de Terceiro Mundo, ostracizadas e desumanamente exploradas pelas sociedades capitalistas europeias, ao longo dos séculos.
Esta situação de desequilíbrio económico encontra a sua génese em uma profunda e complexa crise ideológica, que vai sendo sugerida de modo mais explícito ao espectador, através da presença constante do corvo, um intelectual de esquerda assumido, que, em modo de contador de histórias, estabelece uma analogia entre a atualidade e o ano de 1200.
Cerca de oito séculos antes, Francisco de Assis debatia-se com a problemática da indiferença das aves para com a dimensão religiosa, pelo que selecionara dois dos seus frades para os evangelizar, Totó Inocenti e Frei Ciccillo.
Resilientemente, ambos sobrevivem às condições adversas das estações até que, primeiramente, conseguem converter os falcões, símbolo dos humanos poderosos, capitalistas dominadores e prepotentes, através da adaptação ao seu chilrear. Segundo a nossa perspetiva, este processo de conversão à religião cristã constitui uma metáfora daquilo que deverá ser o processo de mudança de paradigma político-social até se alcançar o comunismo, uma vez que este advoga a luta de classes como caminho para a igualdade, não tendo como fim a manutenção de uma hierarquização social.
No que toca à conversão dos passarinhos, esta é dificultada pela população do meio envolvente que “profana” o local de dilatação da fé com o que se pode percecionar com um momento de comércio, após Totó dar a entender que Frei Cicillo é santo. Esta situação desmorona-se pelas mãos de Cicillo, no que se assemelhou a uma alusão ao episódio bíblico da expulsão dos vendilhões do templo por Jesus Cristo, presente no fim dos evangelhos sinóticos, metaforizando, talvez, a corrupção e a perseguição de interesses pessoais e mesquinhos no caminho para o socialismo.
Apesar de convertidos na sua globalidade, o falcão devora o pássaro mais frágil, para choque e desgosto dos frades. Esta é a crise transversal a todo o filme e imanente à Humanidade desde sempre: a exploração e consequente destruição das fações mais vulneráveis por aqueles que usam a sua força para perseguir sem escrúpulos os seus interesses. Tal como o Padre António Vieira lamentou no seu célebre “Sermão de S.António” aos peixes, o maior vexame e crime do Homem é o mal que infligimos aos nossos semelhantes.
O passarão/falcão do tempo presente é o senhorio que ameaça despejar Totó e o filho. Num encadeamento vicioso e nocivo, Totó e o pai são, por sua vez, o falcão que, com a finalidade de poderem solver todos os seus débitos, num dos momentos mais emocionais do filme, ameaçam retirar tudo à pobre mulher que não acorda os filhos, dada a falta de meios para os alimentar. Esta cadeia nefasta dá sentido à luta de classes esquerdista, na medida em que o proletariado mais desfavorecido deverá pugnar pela subversão do paradigma, de modo a que a justiça seja um valor universal, conferindo sentido a um modelo social vácuo, onde a aparente derrota dos valores marxistas e religiosos não sejam fator de desistência. Em simultâneo, a grande crise de valores que a sociedade de consumo propiciou deverá ser combatida por aqueles que sustentam os seus alicerces, trabalhando, mas vivendo andrajosamente.
A obra de Pasolini extravasa os limites do político, do social e até do religioso e reveste-se de um caráter metafísico e existencial ao colocar questionamentos sobre a morte, no decurso de um diálogo entre Totó e Ninetto. A reflexão que ambos empreendem contribui para acentuar a miséria da vida dos mais pobres: enquanto consideram a vida dos ricos, propiciada pelo dinheiro, uma vida prazerosa, confortável, digna da condição humana, a morte de um pobre é encarada como uma mera questão de interpretação, isto é, a sua vida dura e sofrida não é considerada viver na aceção plena do termo, pelo que é percecionada como um modo diferente de morte.
A figura do corvo, sempre filosófica por ser apologista de ideais humanitários e por ser um crítico do conformismo da sociedade alicerçada no hebetismo, na falta de rumo ou direção, é considerado inadequado ao presente que se afasta progressivamente do ideário da justiça e igualdade. Por ser um elemento perturbador da consciência de Totó e Ninetto, metáforas da própria humanidade no seu percurso, estes acabam por aniquilá-lo e fazer dele alimento.
A brilhante banda sonora de Ennio Morricone é quase um elemento omnipresente ao longo do filme. Quer se encontre como pano de fundo da agitação da demanda de Totó e Ninetto, quer se encontre como expressão da longa espera do Frei Cicillo e do seu companheiro ou no assobio titubeante caraterístico da personalidade do jovem Ninetto, esta obra musical é crucial no salientar da vivacidade da obra de Pasolini, assim como da sua singularidade, uma vez que os créditos são cantados.
Esta película da Sétima Arte, embora aparentemente se situe no domínio da distopia, segundo a nossa ótica, seria muito redutor integrá-la somente nesta dimensão. Distopia e utopia coexistem nesta obra, apesar da vertente positiva se revelar mais sub-repticiamente, naquilo que se pode considerar um retrato muito realista, dada a diversidade de moldes. Apesar do desalento da Humanidade estar presente nas cenas focadas na pobreza, no modo cruel e mesquinho como o ser humano se relaciona, na críticas à guerra («Por um pedaço de terra estourou a guerra»), Pasolini soube velar com mestria uma mensagem de esperança, que incita ao inconformismo e à luta, pois, apesar de referir que “as ideologias passaram de moda”, profere, igualmente: «Não pense que eu choro o fim daquilo em que acredito. Estou convencido de que alguém virá e pegará na minha bandeira e levá-la-á adiante.». O fim da analepse que remonta aos tempos de Francisco de Assis sintetiza na perfeição a mensagem da obra: mais do que converter os pássaros é necessário garantir que eles entendam o verdadeiro significado da mensagem a que estão a aderir.
Ana Zita Baltazar, Carina Lopes, Diana Sofia Pinto, Fernanda Beatriz, Inês Baptista, Joel Pereira