“O cinema e a filosofia como meios para a interrogação. A arte e a educação como vias para uma humanização. Fica a certeza que, com o PNC, já se consegue ver maior movimento neste sonho amorfo.”
Ficha técnica:
Título original: Waking Life
De: Richard Linklater
Género: Animação, Drama
EUA, 2001, Cores, 977
Waking life é um filme sobre a humanidade. Sobre nós dentro do mundo e sobre o mundo imenso que há em nós, consciente e inconsciente. Uma obra que retrata o caminho de um jovem na procura de si mesmo. Mas que representa muito mais, fala-nos de tudo, de um mundo doente, fala-nos da procura do significado da existência de um eu perante mim e perante todos. Não será urgente parar e refletirmos sobre que caminho estamos a tomar? É urgente cogitar sobre o mistério que nos rodeia e do que somos. É iminente, e é imprudente não o fazermos num futuro próximo.
Não há uma realidade nesta obra, são muitas, entrelaçam-se e levam-nos a debater questões que levariam discussões de horas: o existencialismo, a arte, a religião, a identidade, o amor ou o ódio, os nossos medos e receios, a realidade ou o sonho, a liberdade e o livre-arbítrio.
O argumento fílmico envolve um jovem, que ora morreu ou se encontra preso dentro de um sonho e tenta agora acordar. Não se sabe. Mas não é importante sabermos, não nos quer dizer o realizador, ou se calhar diz-nos, nós é que ainda não sabemos. Podemos dividir o filme em duas partes. Na primeira, o jovem tem uma sucessão de conversas com intelectuais de díspares áreas: arte, filosofia, ciência ou religião. E embora seja tão denso o conteúdo de cada conversa, o filme não se apoia numa única teoria, mas numa vastidão de pontos de vista passados e modernos da filosofia. A partir daí, na segunda parte, ora atormentado, ora desanimado com a informação recebida, através de um longo caminho de autoconhecimento, o personagem deixa de ser um sonhador “passivo” e tenta encontrar uma saída do seu sonho.
Há duas cenas que me intrigaram particularmente, numa delas, a personagem principal, interpretada pelo ator Willey Wiggins, encontra o professor de filosofia Rupert Solomon. Uma breve explicação sobre o existencialismo surge na tela, o professor afirma que não concorda com as ideias pós-modernistas da filosofia, que reduzem o ser humano a um conjunto de construções sociais, a uma confluência de forças marginalizadas num ser. Esta noção dar-nos-ia, então, a ideia que deixamos de ter responsabilidade sobre os nossos atos, bons ou maus, que somos seres que vagueiam sem um propósito, e que, por isso, temos a desculpa de não nos importarmos. Opondo-se a esta visão pós-moderna do homem; o professor, rebusca a conceção de Sartre, que esclarece que o ser humano, sozinho no mundo, é exatamente “aquilo que ele faz de si mesmo”. E apoiando-me no filósofo francês, se o homem é livre para agir e não existem valores universais que sirvam de guia para a nossa existência, compete a cada indivíduo, construir valores que possam orientar as suas escolhas. A verdade, é que acabaremos por “ser” até ao último segundo das nossas vidas. Esta tarefa, que nos acompanhará por mais ou menos anos, é a única que impreterivelmente ficará connosco até ao fim. Por isso, ponderar escolhas e tomar decisões dignas da era em que vivemos e da informação a que temos acesso, é quase uma obrigação.
Na outra cena, fala-se sobre o significado das palavras, diz-se mesmo, “As palavras são inertes. São apenas símbolos. Estão mortas, sabe? […] E, ainda assim, quando nos comunicamos uns com os outros e sentimos ter feito uma ligação, e termos sido compreendidos, acho que temos uma sensação quase como uma comunhão espiritual. E essa sensação pode ser transitória, mas eu acho que é para isso que vivemos.”
É com palavras que vivemos, sobrevivemos, é por elas que olhamos, que nos transformamos. É com palavras que nos construímos a nós e ao mundo. E se estas não fossem mais do que sons e construções simbólicas? E numa era digital, em que a comunicação é tão vulgarizada, será que nos estamos mesmo a compreender uns aos outros? O pensamento inicial de uma pessoa, expresso em palavras, será percebido, na totalidade, pela outra? Será que os leitores compreendem a minha mensagem?
Resta-me dizer, que a qualidade da banda sonora, composta por Glover Gil e executada pelo grupo texano Tosca Tango Orchestra, o maravilhoso processo de animação (rotoscoping) e a direta, simples, mas poderosa mensagem filosófica, fazem deste filme, acessível, questionador e um dos mais interessantes que poderemos alguma vez ver, enquanto estudantes, professores, jovens e adultos, que vivem quotidianamente dependentes de um sistema formatado, “formigas” da mesma colónia. Estou certa que enquanto não chegarem tempos de maiores firmezas, podemos tornar este lugar-sonho, menos frustrante e inóspito, se também nós percorrermos este caminho de auto-conhecimento.
Não é novo que os séculos nos trouxeram problemas difíceis e que a filosofia pode dar-lhes uma resposta, aprofundar um tema e reduzir as conceções fechadas de certas realidades de que muitas vezes partilhamos. Não é novo que a tecnologia nos domina cada vez mais, que quebramos a fórmula antiga de uma relação entre duas pessoas, que vivemos tempos novos e cruéis, com desafiantes questões e que é urgente procurarmos respostas. Mas tenho a convicção de que o caminho se traça por aqui, através de um questionamento constante, através do consumo de obras fáceis, mas ruidosas como “Waking Life”.
Dizia o realizador português, JCM, que “O cinema não é mais do que um itinerário que instaura o reencontro consigo mesmo”, e é exatamente o que este filme e o projeto por trás dele, o plano nacional de cinema, nos têm ensinado. Que é através do reencontro dos nossos medos, paixões e pensamentos numa obra, que nos descobrimos. Que é através da indagação, de aprendizes constantes na vida, que procuram continuamente conhecimento, que nos construímos. O cinema e a filosofia como meios para a interrogação. A arte e a educação como vias para uma humanização. Fica a certeza que, com o PNC, já se consegue ver maior movimento neste sonho amorfo.
Sandra Pinheiro, 12º ano