“Covilhã, 10 de outubro de 2016
Querido Filme,
Escrever sobre Cinema nunca é tarefa fácil. As palavras nunca são suficientes e uma experiência dificilmente ultrapassa o inexprimível. E é assim que me deparo depois de assistir ao filme Cartas da Guerra. Há dias que ando com o filme na cabeça, a vê-lo e a revê-lo através de parcelas da minha memória e ainda assim na altura de escrever sobre ele tenho tanto para dizer que nenhuma palavra me parece oportuna.
É inegável que o filme atingiu um feito histórico, uma vez que apela à ida à sala de cinema por ser um filme badalado e “estranhamente português”. E se os caminhos que o cinema nacional tem percorrido são expressamente sinuosos compreende-se o hipotético interesse do público em assistir a esta sessão e, por fim, a tecer uma apreciação sobre o filme.
O que acontece com a obra de Ivo M. Ferreira é de uma dualidade desmedida. Se por um lado, somos embalados por um guião fenomenal que nos brinda com as sentidas palavras de António Lobo Antunes; por outro lado, somos colocados diante um conjunto de imagens e sons que exigem prudência e sensibilidade por parte de um público vagamente educado para a receção de tais estratégias cinematográficas.
Como espetadora incontestavelmente sensível permito-me finalmente largar das regras a que o “ofício” me congrega e discorro apenas sobre experiência peculiar e incomum que foi assistir a um filme português numa sala de cinema – a sala de Cinema Teixeira de Pascoaes -, e por ter sido incrivelmente levada para uma dimensão assaz deslumbrante. Quando se me apresentam Cinema e Literatura de uma só vez vale-me o prazer e o entendimento para repousar e esperar que os meus olhos se encham do que de mais Belo me pode completar. E foi assim que me permiti ocupar um dos primeiros lugares da sala, talvez, na ânsia de poder aceder primeiramente às imagens que surgiam na tela. Esta vaga crença foi o motivo suficiente para que tivesse o privilégio de encontrar ao meu lado uma senhora, já com uma idade considerável, que momentos antes do filme começar me segredou, mesmo sem saber o meu nome, toda a turbulência com que teve de viver naquele domingo para àquela hora estar naquela sala e no Cineclube de Amarante a ver o Cartas da Guerra. Assim que as luzes se apagaram a sua voz ainda me sussurrou ao ouvido ‘continuamos a conversa depois do filme.’
A verdade é que com o filme embarcamos numa viagem de sensibilidade e elegância que só um texto de Amor pode admitir ao seu ou aos seus destinatários. Os olhos apagam-se para o que os circunscreve, os ouvidos adotam uma melodia intransponível e, por fim, as palavras de António a Maria José. Cartas de Amor redigidas num clima absurdo de terror e solidão que aproximam o homem, o “doutor” e “escritor” da sua ainda complacência. Estes textos de amor que ora escritos, ora lidos, por um amante e por uma amada são passiveis de conceder ao espetador a perceção de que ambas as personagens se fundem e que a voz de um é na verdade e ao mesmo tempo a voz do outro.
No filme, o audível é consubstanciável com o visível, sendo o timbre retocado pelo preto no branco da tela que é o ecrã. E se a intenção do realizador era criar distanciamento entre o espetador e a época que retrata no filme caber-me-ia garantir-lhe que tal efeito não foi seguramente e completamente atingido. Na realidade o que tanto me disse este filme é que também há beleza e amor numa frente bélica, e apenas o título do filme serve de impulso para que neles se mergulhe.
Cartas da Guerra escritas numa África que conta mais histórias e mais História que aquela que é prevista pelo entendimento racional. As imagens e as paisagens trazem à memória cheiros e texturas de quem reconhece naquelas paragens parte de si e da sua génese.
O filme é uma ode ao sensorial e ao apaixonante. Um feito brilhante no Cinema de Portugal e de todos os que lhe querem bem.
Tenho a certeza que te revisitarei Cartas da Guerra.
Até breve,
Débora Gonçalves”
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[1] Fotografias da sessão:
| 2 de outubro de 2016 |
[2] Ficha Técnica
Título: Cartas da Guerra.
Baseado no livro António Lobo Antunes, D’Este Viver Aqui Neste Papel Descripto, Cartas da Guerra, de organização Maria José e Joana Lobo Antunes
Realização: Ivo Ferreira
Argumento: Ivo M. Ferreira, Edgar Medina
Atores: Miguel Nunes, Margarida Vila-Nova, Ricardo Pereira
Género: Drama
Produtores Luís Urbano, Sandro Aguilar. O SOM E A FÚRIA.
POR, 2016, Cores, 105 min.
[3] Trailer
[4] O meu agradecimento à produtora “O Som e a Fúria“, na pessoa de Marta León, pela amabilidade que teve em enviar-me estas belíssimas fotografias do filme.
[5] Muito obrigada, Débora, por mais este precioso contributo no blogue do Plano Nacional de Cinema (PNC) da ESA. Creio que tem uma relação umbilical com o PNC porque se trata de um projeto que ajudou a implementar em 2014-15!