Ficha técnica:
Realização: Manoel de Oliveira
Intérpretes/Personagens: Nascimento Fernandes (Lojista), Fernanda Matos (Teresinha), Horácio Silva (Carlitos), António Santos (Eduardinho), António Morais Soares (Pistarim), Feliciano David (Pompeu), Manuel de Sousa (Filósofo), António Pereira (Batatinhas), Américo Botelho (Estrelas), Rafael Mota (Rafael), Vital dos Santos (Professor), Manuel de Azevedo (Cantor de Rua), António Palma (Freguês), Armando Pedro (Caixeiro), Pinto Rodrigues (Polícia).
Género: Ficção
Produção: António Lopes Ribeiro
Portugal, 1942,68’
Análise fílmica:
A narrativa tem como elemento dinamogénico um grupo de miúdos, centrando-se a ação nas personagens Carlitos, Eduardo e Terezinha, esta última pretendida por ambos. Esta relação triangular será o alicerce de todo o argumento fílmico e o móbil do conflito amoroso.
Dada a natureza dúbia, ambígua e complexa das personagens, podemos classificá-las como atípicas, por exemplo, Carlitos (Horácio Silva) é bom e humilde mas comete um roubo para conquistar Terezinha; Eduardinho (António Santos) é o líder dos rapazes, o vilão que não se importa de mentir para faltar à escola, mas tem o “ar de malandro”; Terezinha (Fernanda Matos) é uma menina com um ar cândido mas sedutora, ora concedendo a sua atenção a Eduardinho, ora a Carlitos; o professor (Vital dos Santos) é austero, impondo uma disciplina rígida mas também dando permissão para que os alunos visitem o Eduardo no hospital; o Lojista (Nascimento Fernandes), dono da “Loja das Tentações”, é simultaneamente paternal para com os miúdos da rua porque percebe que, ante as agruras das suas existências, as suas brincadeiras humanizam as suas vidas; mas é profundamente rígido, jocoso e, até, agressivo para com o seu funcionário, de uma idade muito próxima da dos restantes miúdos.
As imagens fílmicas são filmadas em espaços abertos e fechados, exteriores e interiores, para além do trabalho realizado em estúdio. A rua, os carris, a zona ribeirinha do Porto/Gaia, o monte e o céu opõem-se à sala de aula e ao interior das casas. Esta dualidade é associada, no primeiro caso, à liberdade e, no segundo, à prisão ou opressão.
A própria janela é dúbia: entreaberta ou aberta (com o gato no parapeito) simboliza a liberdade; quando fechada, é sinónimo de clausura.
O espaço social deste grupo de miúdos é pobre. Vivem numa zona que, apesar da sua beleza natural, é habitada por famílias carenciadas. Brincam na rua ao “Aniki Bóbó”, nadam no rio, divertem-se a contemplar a passagem dos comboios. São espontâneos e carregam as virtudes e os defeitos do universo dos adultos.
Manoel de Oliveira enfatiza, do ponto de vista temporal, as dicotomias noite/dia alternando-as de forma célere. A noite “desperta” os fantasmas, o jogo dos “polícias e ladrões”, a temática filosófica da morte. Simboliza também a transgressão aquando do encontro “amoroso”, às três da manhã, de Carlitos e Terezinha. Neste contexto, o telhado pode muito bem significar os obstáculos e os medos que Carlitos tem que ultrapassar para agradar ou conquistar Terezinha.
Se o tempo da escola é tempo-prisão; o fim do tempo-escola é tempo-libertação. A música cantada na rua, quando o grupo sai da escola, manifesta e acentua este desejo, e ânsia de liberdade que percorre o espaço, e os tempos cronológico e psicológico das personagens.
Do ponto de vista dos planos, os diálogos entre planos picados (por exemplo, o inicial mostrando a cidade e o comboio) e planos contrapicados (a Terezinha à janela ou a cena de Eduardo a escorregar do telhado) são uma constante. Manoel de Oliveira joga, ainda, iconicamente com as texturas (areia, monte), as sombras (claro, escuro) e o som.
A música tem um papel preponderante na obra cinematográfica. Surge, amiúde, como presságio, por exemplo, o apito do comboio que antecede o perigo e a tragédia. As vozes sussurrantes, durante o pesadelo, ajudam a intensificar a ação dramática. A lengalenga cantilena “Aniki Bóbó”surge, simultaneamente como pólo de união – dado que todos brincam. Afinal, são crianças mas nenhuma deseja ser ladrão, o que indicia a presença da consciência moral ou o reconhecimento ético do binómio correto/incorreto. Por outro lado, enquanto uns encarnam o papel de polícias, outros serão ladrões. Extremos irreconciliáveis na realidade, mas ultrapassados nesta obra ficcionada.
Segundo Manoel de Oliveira, «Não era uma melopeia do meu tempo de miúdo. Eu desconhecia-a. Era uma melopeia que eles usavam e eu aproveitei logo. (…) Decidi aproveitar como título “Aniki-Bóbó”. Achei que envolvia um certo mistério. Esse mistério adequava-se aos personagens, à riqueza interior dos personagens, e adequava-se àquela cena da noite, em que eles falavam de fantasmas, de Deus, do Diabo, das Estrelas, etc. (…) Pu-los a discorrer sobre a noite e sobre as estrelas, sobre o diabo e as tentações. (…) Eram preocupações minhas, fantasmas meus, que depois se reflectem ao longo de outros trabalhos meus.» (Entrevista a João Bénard da Costa, 1989).
Filmado e produzido em pleno Estado Novo, «não esqueçamos que Aniki-Bobó, embora inspirado no conto Meninos Milionários, do Dr. Rodrigues de Freitas foi imaginado e realizado durante a Guerra, em 1941-1942» (Manoel de Oliveira), esta obra cinematográfica é o retrato da natureza dicotómica, hierarquizada e maniqueísta (bom e mau, polícia e ladrão, justo e injusto, verdadeiro e mentiroso, invejoso e altruista, mãe e filho, professor e aluno) do ser humano.
Para tornarmos intelígivel as motivações intrínsecas do realizador, concedemos-lhe a palavra:
« É uma história um tanto ingénua, mas que encerra muitas das minhas preocupações. (…) A palavra ainda não era, para mim, a revelação que depois foi. “Aniki-Bóbó” vive muito mais da imagem do que da palavra (…).
…todos os meus filmes vão parar ao desconhecido, ao que se descobre por detrás do desconhecido. Porque a morte é uma espécie de cortina preta que nos impede de saber a mais pequena coisa. Para além da morte, de mais nada as pessoas se apercebem. Portanto, isto desperta logo a curiosidade e a aventura de pensar sobre o que estará para o lado de lá, para além dessa cortina negra.
Procurando contar uma história tão simples, queria reflectir nas crianças os problemas dos adultos, aqueles que estão ainda em estado embrionário; pôr em contraposição a noção do bem o do mal, do ódio e do amor, da amizade e da ingratidão. Queria sugerir o medo da noite e do desconhecido, a atracção pela vida que pulsa em cada coisa à nossa volta, com força e com convicção.» (Entrevista a João Bénard da Costa, 1989).
De forma magistral, Manoel de Oliveira subverte os universos: as crianças são adultos em potência, estabelecendo uma relação espelhar com o universo ético-moral do universo dos adultos. Este mecanismo de projeção e de transferência, utilizado pelo realizador, possibilita uma relação de proximidade e de identificação do espetador com a ação, os medos, as vitórias e conquistas destes pequenos heróis da existência.
E se o ser humano é, na sua natureza e essência, paradoxal, importa realçar que o realizador, resolvendo os problemas e os conflitos das personagens, enaltece os valores positivos do respeito, da amizade, da paz e do altruísmo. Neste sentido, Aniki Bóbó é um filme sensível, dado que apela à educação da sensibilidade de todo o ser humano.
Como refere o lojista, «as zangas não valem a pena». Então por que será que o homem persiste em guerrear-se? Conseguirá, doravante, aprender a lição de Manoel de Oliveira?